Reaproveitando e transformando pneus em peças lindas cheias de criatividade. Isso faz a história de Kelly ter destaque como devido merecimento. Só não vale confundir com reciclagem, mas é uma história daquelas que a gente compartilha com gosto. Gente que faz diferença…
A parteira da favela se encarregou de trazer mais aquele bebê ao mundo. A balança do mercado serviu para pesar a pequena, que cabia numa caixinha de sapato.
Nasceu pequena em tamanho e continua ainda hoje. Mesmo assim, move uma montanha de pneus. Com a força que vem de dentro, inverteu um caminho que parecia predestinado.
Por pensarem que não era possível, Kelly Cristina da Silva foi lá e fez.
Passou a infância recolhendo lixo de caçambas para ajudar os pais a sustentar a casa de cinco filhos.
Hoje, é formada em gestão ambiental, integrante da guarda civil municipal e conhecida até fora do país pelo projeto de transformar pneus e entulhos em obras de arte.
Já recolheu mais de dois mil pneus das ruas de Ribeirão Preto e fez surgir dali, pelo menos, 500 peças de alegria em decoração colorida.
Não bastasse tanto, está a realizar mais um dos sonhos cultivados pela vida.
Atuando no Fundo Social de Solidariedade da Prefeitura de Ribeirão Preto, auxilia na implantação do projeto Catasonho, para capacitar os catadores em agentes ambientais.
Kelly me recebe na garagem que hoje é oficina, com bolo, chá quentinho e um sorrisão no rosto.
Tartarugas, super-heróis, pássaros e peixes acompanham nossa conversa. São feitos de pneus, pelas mãos da entrevistada.
– Tem gente que fala que eu perdi a área de lazer da minha casa. Meu trabalho é tudo para mim!
Começa em 22 de março de 74, com a história da parteira, balança de mercado e caixa de sapatos que ouvia a mãe contar.
Nasceu em Osasco, a segundo de cinco filhos. Por lá, começou a pegar recicláveis em caçambas para ajudar em casa.
Os pais decidiram partir para Ribeirão Preto pela bronquite do filho mais velho, que só piorava no frio paulista, de dentro do barraco da favela.
Por aqui, a vida continuou difícil. O pai ficou em São Paulo para trabalhar, a mãe teve uma complicação em um dos partos e passou meses internada.
Kelly e os irmãos se viravam sozinhos, aos cuidados de uma vizinha que pouco podia ajudar.
– Eu pegava papelão, vendia e, com o que dava, comprava comida. Naquela época, vendia de caneca. Ainda bem. Porque não daria para comprar um quilo de nada. Quando não tinha dinheiro, eu saía andando pelo mato e encontrava brotinhos de abóbora, uma verdura: sempre tinha algo para comer.
O trabalho era no período contrário à escola. Nem dentro da sala de aula, porém, Kelly se esquecia da dureza de fora.
– Eu sofria muito preconceito. Chorava muito e perguntava muito para a minha mãe: ‘Por que a gente é pobre? Por que a vida é assim’.
A resposta sempre vinha em doses de ânimo.
– Ela me dizia para pedir a Deus, que ele iria iluminar. Com esse pensamento, eu cresci de maneira digna e honesta.
Aso 12 anos, a rotina de recolher recicláveis acabou.
Na época, década de 80, Ribeirão Preto tinha a guarda mirim, que encaminhava adolescentes para o mercado de trabalho.
– Esse projeto fez muita gente ser do bem. Fiquei dos 12 aos 18 anos na guarda.
Quando saiu, engravidou do primeiro filho e dobrou as responsabilidades. Foi equilibrando a rotina entre muito trabalho e a casa, descobrindo no caminho coisas boas.
– Trabalhei na Apae, como telemarketing. Ganhava pouco, mas eu era feliz porque sentia que estava ajudando as pessoas.
Aos 32 anos, os dias, de fato, começaram a mudar para Kelly.
Soube que a prefeitura estava com concurso aberto para agente de controle de vetores e guarda municipal.
Foi logo prestando os dois, se fortalecendo pelos comentários de que não iria passar na prova física da guarda.
Passou primeiro no concurso de agente. Atuou cinco anos na vaga, no combate a uma das maiores epidemias de dengue que a cidade registrou.
– Eu lembrei das minhas raízes. Se não fosse a natureza me dar brotos de abóbora, eu teria passado fome. Percebi que dava para cuidar, que o lixo não precisava estar ali.
Junto com a equipe, procurava inovar. Levar informações pelo teatro, por inserções culturais em pleno ônibus circular.
– Foi quando me despertou: quero cuidar do meio ambiente!
O despertar veio quase ao mesmo tempo em que foi chamada para assumir a vaga na guarda civil municipal, em 2010. O salário era melhor, o cargo também e aceitou.
Já de cara, decidiu que o foco seria a patrulha ambiental. A chefia, entretanto, foi logo avisando: “Você é novata! Tem que aprender mais!”.
– Eu decidi que eu iria fazer uma faculdade e mostrar que era capaz.
Quando chegou ao final do curso de Gestão Ambiental, em 2014, mais que diploma, tinha a vaga tão desejada e o projeto que iria, enfim, dar sentido a toda trajetória.
Como trabalho do curso de gestão ambiental, os alunos tinham que desenvolver um projeto que ajudasse a comunidade a cuidar do meio ambiente.
Kelly não precisou ir longe. No Parque dos Servidores, bairro onde mora, havia entulhos ocupando todo terreno vazio.
Ela, então, criou pontos de descarte, com o compromisso da prefeitura de recolher sempre que o local estivesse cheio.
A nota foi 10 e o resultado se espalhou pelo bairro todo.
– O bairro ficou mais limpo!
Para segurar o cartaz que avisava os moradores sobre o ponto de descarte, Kelly usou pneus e pedaços de madeira.
– Mas eu achei que o pneu sem cor não estava chamando a atenção.
Pintou, então, de amarelo.
– Aí, eu olhei e achei que parecia um Minion. Colei dois CDS e fiz os olhos.
Estava criado ali seu projeto de arte.
Kelly, que já se angustiava com a quantidade de pneus abandonados no bairro pelas pessoas, encontrou uma solução.
– Eu comecei a pesquisar, buscar ideias pela internet.
No começo, fazia suas peças artísticas apenas como doação a lares de idosos, praças, condomínios da periferia.
Depois, entendeu que poderia vender para quem pode pagar e, assim, bancar as doações para quem não pode.
– Tenho peças espalhadas na região toda, no Brasil e, pela internet, fiz contatos no México, Bolívia. Vamos trocando ideias!
Na Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto deste ano, Kelly transformou 200 pneus em poltronas e desenhos, espalhados pela praça central.
Em dois anos de trabalho, despertou a atenção e o encantamento Ribeirão afora. E veio o convite para o Catasonhos, do Fundo Social de Solidariedade.
Kelly diz que o projeto Catasonho é o sonho do futuro, que une todo seu passado.
– Os catadores de recicláveis não são vistos pelas pessoas. Mas, na verdade, eles são agentes ambientais importantíssimos para a cidade, ao retirar do meio ambiente tanta coisa ruim. Nós queremos que eles se sintam valorizados.
Num dia de 24 horas, ela, então, faz caber sua arte com pneus, as aulas de artesanato que dá em escolas de toda região, o projeto de catar os sonhos de tantos que, como ela fez um dia, vivem do lixo.
– Eu me sinto muito feliz. Tenho o que sempre sonhei: marido, filhos, minha casa, carro, faculdade. Hoje, se eu quero comprar uma pizza, eu consigo. E consigo passar o conhecimento para outras pessoas.
Diz que, com tantas realizações, ainda hoje sofre preconceitos de quem critica suas unhas manchadas pelo preto dos pneus, de quem a vê pegando recicláveis pela cidade e não entende a importância do ato.
Kelly aprendeu, muito cedo, o que fazer com a maldade.
– Se não fosse o lixo, as garrafas, os pneus, a unha suja eu não seria quem eu sou hoje. Se não fosse a natureza, eu iria passar fome. Até o ar que a gente respira vem da natureza!
Por pensarem que não era possível, foi lá e fez.
E continua a fazer. Espalhando colorido com o que era lixo, invertendo caminhos com coração cheio de força.
*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/
Fonte: História do Dia (vale à pena visitar, um site com muitas histórias lindas para ler e ouvir)