Autor de diversos livros sobre epidemias modernas diz que a destruição desenfreada da natureza coloca a saúde humana em risco devido ao contato com uma grande quantidade de vírus. Nos últimos 50 anos, algumas das principais doenças surgiram das florestas tropicais na África e na Ásia.
O escritor David Quammen é certamente um dos maiores cronistas sobre a diversidade biológica existente no planeta. Seus livros sobre a teoria da evolução de Darwin e a extinção das espécies oferecem uma visão ao mesmo tempo profunda e instigante. Entre suas obras, “O Canto do Dodô” [Cia das Letras, 2008] é a mais famosa, mas destacam-se ainda os magníficos contos sobre grandes mamíferos reunidos em “Monstro de Deus” [Cia das Letras, 2007].
Na última década, o americano voltou seu interesse a um outro tipo de diversidade: os vírus e as enfermidades que eles causam nos humanos. Seus livros investigativos, que sempre incluem relatos sobre viagens ao coração das selvas do Congo ou às matas do Sudeste Asiático, detalham com informação acessível o surgimento do vírus da AIDS (HIV) e do ebola.
Mas é um livro de 2012, chamado “Spillover” [Transbordamento, em tradução literal], que tem voltado aos debates e recebido resenhas em todo mundo. A obra revela que a complicada relação entre os humanos e o meio ambiente está na raiz das maiores enfermidades recentes. É uma leitura essencial no momento em que o coronavírus já contaminou (apenas entre os casos confirmados) mais de 1 milhão de pessoas no mundo, e a contagem de mortos não para crescer.
Com relatos sobre encontros com pesquisadores em diversas partes do mundo, a obra traz uma perturbadora revelação: entre a comunidade científica, há muito se esperava uma pandemia com os contornos da Covid-19. Eles a chamavam The Next Big One [A próxima grande] e Quammen não tem dúvidas de que a crise que vivemos agora se enquadra nesta categoria.
“Eu não sei se esta é “a grande”, mas certamente é uma das grandes, pois já causou muitos danos”, o autor comenta em uma entrevista exclusiva ao InfoAmazonia desde sua casa em Bozeman, no estado de Montana (Estados Unidos).
Quammen também falou sobre as condições para o surgimento de patógenos como o coronavírus e garante que o que ocorre no momento na Amazônia, com a avanço de garimpos e abertura de estradas madeireiras, é um cenário muito similar ao que viu nas florestas da África Central, onde surgiu o ebola.
Leia abaixo a entrevista completa.
Estou curioso em saber o quê você sentiu quando soube do novo coronavírus, por ter alertado muitos anos antes de que isso poderia acontecer. Não creio que tenha ficado surpreso, certo?
David Quammen – Eu definitivamente não fiquei surpreso, eu previ algo como isso no meu livro oito anos atrás. E a única razão pela qual eu fiz esta previsão foi porque os cientistas com os quais eu estava conversando fizeram estas previsões. Então, quando eu ouvi em janeiro que um novo coronavírus havia surgido na China, saído de um mercado de vida selvagem, a única coisa que me surpreendeu foi o quanto estávamos despreparados. Me deixou frustrado e preocupado. Eu me encontrei por acaso com um amigo na semana passada e ele me perguntou: “Como você se sente tendo previsto tudo isso?”. Respondi a ele que preferiria estar errado. Desejaria que os cientistas que ouvi estivessem errados.
Em seu livro, “Spillover” o senhor nos conta que existe entre a comunidade científica o termo NBO ou The Next Big One (A próxima grande) para se referir às possíveis grandes pandemias que nos atingirão. A Covid-19 seria a NBO ou ainda podemos esperar algo pior?
DQ – Essa é uma das grandes! Não sei dizer se esta é “A” grande, mas certamente está sendo uma NBO, porque está nos custando milhares de vidas e trilhões de dólares ao redor do mundo. As sociedades estão sendo interditadas. Os sistemas de saúde na Itália e na Espanha estão colapsando. Escolas estão fechando, representando oportunidades perdidas para crianças carentes. Essa é uma das grandes, mesmo que a taxa de letalidade não seja tão alta. Mesmo se conseguirmos controlar a crise e muita gente não venha a morrer, ainda terá sido uma grande pandemia, pelo custo de ter chacoalhado sociedades e economias, além dos sistemas de saúde e educação.
Muitas doenças recentes surgiram em áreas que sofreram com garimpos, destruição de florestas e outros impactos. Qual é a razão para isso? Por que esta conexão direta entre degradação ambiental e o surgimento destas infecções?
DQ – Estas doenças, incluindo essa nova causada pelo coronavírus, são chamadas de doenças zoonóticas. Isso significa que elas passam de animais não humanos para os humanos. Elas geralmente são novas para humanos. Esta é uma das razões pelas quais elas geralmente são tão devastadoras para nós. Nós não temos vacinas para elas, nós não temos terapias para estas doenças. Se formos ainda mais desafortunados, esse vírus evolui para ser transmitido de uma pessoa a outra. Mas porque isso ocorre? Qual é a razão inicial para isso? Este é o evento que chamamos de transbordamento [spillover], quando o vírus passa de um animal para o seu primeiro hospedeiro humano. Isso acontece em áreas com grande degradação ambiental. Ambientes ricos em diversidade biológica, com muitos tipos de plantas, animais, fungos, bactérias, são também lugares que abrigam muitos vírus. Eles vivem ali, sem serem notados, ao longo dos milhões anos sem causar qualquer doença, até que de repente passam para os humanos. E quando há degradação ambiental, significa que estamos interferindo naquele ecossistema. Estamos cortando árvores, construindo assentamentos,abrindo garimpos. Isso significa também que pessoas trabalhando nestes lugares precisam ser alimentadas. Frequentemente, elas se alimentam de carne de caça, a vida silvestre local é capturada para servir de alimento. Em outras situações, este animais são caçados para serem vendidos, para que pessoas em outros lugares os comam. Então há todos os tipos de perturbação na vida selvagem, na biodiversidade, que afinal contém uma grande variedade de vírus. Quando realizamos estes tipos de interferências, estamos convidando vírus para que se tornem nossos vírus, para que eles pulem para dentro de nós. Estamos dando a eles uma oportunidade para que expandam seus horizontes. Talvez este vírus estivesse em uma situação difícil, poderia estar em vivendo dentro de uma espécie em risco de extinção. Uma oportunidade de pular para dentro de nós pode se traduzir em os vírus terem ganho na “loteria evolutiva”. Eles acabaram de entrar na espécie de mamífero de grande porte mais interconectada e mais abundante em todo o planeta. Se nos infectam e conseguem passar de uma pessoa para outra, eles vão se espalhar por todo o mundo, atingindo um grande sucesso evolutivo. Para nós, é uma situação miserável, é uma pandemia, é a morte. Mas para eles é sucesso! E acontece por conta da perturbação ambiental, a degradação ambiental de lugares que naturalmente abrigam muitos e muitos vírus.
É quase como se nossos grandes ecossistemas tivessem uma armadilha montada para evitar interferência. Ao passo que vamos entrando neles e destruindo, nós disparamos estas armadilhas contra nós.
Uma questão que intriga a muita gente é porque até agora não tivemos uma pandemia originada na Amazônia, já que aqui ocorrem impactos como a maior taxa de desmatamento em todo o planeta?
DQ – Eu não sei. Eu me faço esta mesma pergunta. Na verdade, uma das mais assustadoras doenças recentes surgiu na Bolívia, em 1961, o vírus da enfermidade Mapucho. O pesquisador que descobriu essa doença – e quase morreu ao contraí-la – é um americano chamado Karl Johnson. Ele descobriu que algumas pessoas vivendo em um vilarejo boliviano estavam sofrendo e morrendo desta estranha nova febre. Ele localizou o vírus em um roedor e se perguntou porque naquele momento isto estava ocorrendo, pois não havia registros no passado sobre a doença. O que ele descobriu foi que o roedor se adaptou e estava vivendo muito melhor em áreas agrícolas do que na floresta, seu ambiente natural. Assim, quando a população da vila crescia e precisava plantar mais milho e feijão, a população do roedor explodia. Como a espécie carregava o vírus, mais e mais pessoas começaram a ter contato com ele. Mas este é apenas um caso. A Amazônia está cheia de espécies de animais e, portanto, está repleta de vírus. Então por que não ouvimos falar do transbordamento destes vírus para humanos? Eu não tenho uma resposta para isso. Mas o fato de que não tivemos até agora, não quer dizer que não teremos. Pode acontecer a qualquer momento.
Podemos dizer que com o passar do tempo, as chances de que um novo vírus letal surja na Amazônia vão crescendo. No Congo, o outro grande ecossistema de floresta tropical, produziu ebola, marburg, zica, e uma parcela considerável das doenças virais mais assustadoras. Acho que é apenas uma questão tempo para que a Amazônia entre nesta lista.
Não se pode afirmar que neste momento no Brasil há suficiente investimento em Ciência para acelerar o entendimento e prever quando a degradação da Amazônia poderia fazer surgir um patógeno semelhante ao corona. Em sua visão, quais são os esforços científicos necessários para melhor entender e até prever o surgimento de novas doenças?
DQ – Como o seu governo, o meu governo também tem realizado cortes nos orçamentos para pesquisas científicas. Como vocês, nós também temos um presidente o qual não encontro adjetivos para descrever. Mas há muito trabalho que está sendo feito na descoberta de novos vírus. Isso é uma parte importante: descobrir o que existe por aí, o leque de diversidade de vírus que existe vivendo nos animais, plantas e outras criaturas. Há outros trabalhos no campo do sequenciamento genético, como isolar e sequenciar determinados vírus. Um time em Wuhan, na China, já em janeiro, tinha sequenciado o genoma deste vírus [o coronavírus], o que foi muito valioso para todo o mundo. Assim soubemos que se tratava de um coronavírus relacionado ao vírus da SARS, mas não tão próximo para saber o que poderíamos esperar. O genoma também foi quem nos contou que este vírus não se trata de uma arma química, feita por alguma conspiração de cientistas maníacos em algum obscuro laboratório. Soubemos que o vírus vem de um morcego, por conta da exata equivalência deste genoma com aquele de vírus encontrados em uma espécie de morcego. Portanto, o trabalho científico é extremamente importante. Há dez anos, quando estava escrevendo Spillover, um cientista me contou que seu laboratório estava trabalhando com a possibilidade de se criar uma tecnologia com um chip que conteria reagentes para sequenciar qualquer novo vírus. Você poderia criar uma versão deste chip que iria em uma máquina portátil e que nos daria a possibilidade de testar uma pessoa sobre a presença de uma infecção no tempo de uma checagem de segurança em um aeroporto. Ou seja a pessoa estaria na fila quando um agente recolhe uma amostra para fazer o teste e no tempo de que a pessoa levaria para tirar seus sapatos, sua jaqueta e passar na máquina de raio-x, ela já saberia se seu teste foi positivo ou negativo. Imagine quão útil seria isso num momento como esse? Mas nós não temos isso. Esse cientista estava me falando sobre isso 10 anos atrás e ainda não temos. Mas nós precisamos de algo como isso. Precisamos de investimento privado e do governo, em coisas que nos permitam prever, nos preparar e lidar com novas pandemias. Líderes tanto no mundo dos negócios e no setor público precisam de disposição para gastar os recursos, o tempo e fazer esse esforço. Mesmo que isso não aconteça neste ano, ou no ano que vem, ou mesmo durante a presidência de Bolsonaro ou Trump. Mas parece que eles não querem gastar os recursos em algo que não terá resultados em seus mandatos. Isso é o que torna a situação tão difícil.
Com relação às medidas imediatas que foram tomadas, como o banimento pela China do comércio e consumo de animais silvestres, podemos ter esperança de que isso represente uma mudança real, que evite futuras pandemias?
DQ – Eu tenho esperança de que estas medidas representam uma mudança importante. Claro que ninguém pode ter certeza sobre o que fará a China, pois é um país soberano. Mas haverá muita pressão internacional sobre eles para isso mudar. Quando a SARS ocorreu em 2003, assustando pessoas ao redor do mundo, ficou claro que o vírus também havia vindo de um morcego, muito provavelmente de um mercado na China. Depois daquilo, as pessoas estavam tão assustadas, que a China baniu a venda de animais selvagens nestes mercados. Quando eu fazia a pesquisa para meu livro “Spillover”, em 2009, eu fui à China e a um destes mercados. Eu estava com um pesquisador que estudava estes locais e ele me perguntou “Você acha que isto aqui é ruim, você deveria ter visto como era antes da SARS”. Mesmo quando estive lá, a disponibilidade de animais selvagens era uma loucura. O problema é que o comércio acabou sendo empurrado para baixo do tapete. Você pode ir nos fundos de um restaurante e pedir para que cozinhem um gato selvagem ou um pangolim. E na verdade, tudo isso já estava legalizado novamente. Então imagino que a pressão desta vez é de que a proibição terá que ser para valer. O comércio e o mercado negro terão que ser banidos.
A captura de animais na natureza e a venda dos animais vivos nos mercados têm que ser proibidas. E o resto do mundo tem que seguir o mesmo caminho, isso não pode recair apenas somente sobre a China.
Que outras mudanças, especialmente de longo prazo, podemos esperar?
DQ – Certamente há conversas a respeito. Eu mesmo estou falando a respeito destas mudanças todo dia. As pessoas estão falando que este deveria ser um alerta de que todas estas coisas estão conectadas: desmatamento, mudanças climáticas, espécies invasoras e novas doenças letais. Estamos falando também sobre a questão populacional, os padrões de consumo. Esperamos que um evento como esse – que ironicamente chamamos de “o momento de encontrar Jesus” – possa mudar as coisas [risos]. Mas eu não sei se os empresários e políticos de fato vão “encontrar Jesus” após tudo isso. Ou talvez as pessoas comuns vão mudar os padrões de consumo drasticamente; comer menos carne, viajar menos. Eu por exemplo viajo muito. Tenho pensado sobre isso, que talvez eu devesse viajar menos, encontrar uma maneira de fazer isso. Talvez pagar por compensações pelas viagens, dar alguns dólares extras para uma organização conservacionista. Enfim, tenho esperança de que se esse evento for realmente ruim, e na verdade ele já tem sido, por seu número de mortes e tumulto econômico, nós possamos repensar a maneira como vivemos na natureza.
*Foto de abertura: Por Ronan Donovan, cortesia de David Quammen
Por Gustavo Faleiros